A Sucessão do Cônjuge Sobrevivente No Novo Código Civil: Um Exercício De Paciência
A Sucessão do Cônjuge Sobrevivente No Novo Código Civil: Um Exercício De Paciência
Autor: LUÍS PAULO COTRIM GUIMARÃES é Doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP, procurador da Defensoria Pública (MS) e professor de Direito Civil.
Com a entrada em vigor do Código Civil, sem dúvida alguma encontramo-nos diante de um aspecto absolutamente inovador da sucessão legítima, modificando-se, de forma contundente, o que prescrevia os incisos I e II do art. 1.603 do texto revogado.
Foi introduzido no diploma civil a figura da concorrência, ou da coexistência do direito hereditário entre os parentes consangüíneos em linha reta (descendentes e ascendentes) e o cônjuge sobrevivente.
Nesse aspecto, verificam-se precedentes do instituto no Direito Comparado que, nos arts. 2.139 a 2.142 do Código Civil português de 1966, trata da sucessão partilhada entre cônjuge e descendentes, bem como entre cônjuge e ascendentes1. Situação semelhante também é encontrada no Código Civil italiano de 1942 – o Codice Civile – no qual os arts. 581 e 582 disciplinam a sucessão do cônjuge, em concurso com filhos e ascendentes.
De qualquer forma, não houve alteração quanto à ordem preferencial da vocação hereditária, isto é, permanece o cônjuge sobrevivo situado no terceiro grau, levando a totalidade da massa na hipótese de inexistência de descendentes ou ascendentes (art. 1.838).
A concorrência legal entre descendentes e o cônjuge sobrevivo, tipificada no novo Código (art. 1.829), deve ser compreendida dentro de alguns critérios particulares, entre os quais destacam-se: a) a adoção de um regime de bens específico; b) a existência de descendentes unilaterais e comuns; c) a natureza da massa patrimonial deixada pelo autor da herança (se particular ou comum).
Sem a observação de tais elementos, torna-se basicamente impossível a correta compreensão do art. 1.829 do NCC, sob pena da efetivação de uma distribuição incorreta – ou injusta – da quota hereditária, comprometendo-se, pois, o direito dos beneficiários, fazendo gerar, inclusive, a expectativa de anulabilidade da própria partilha, por vícios ou defeitos (art. 2.027).
REGIMES DE BENS QUE ADMITEM O CONCURSO
Pois bem, pela leitura do enleado dispositivo legal (art. 1.829, I, NCC), não haverá concorrência entre descendentes e o cônjuge sobrevivente se o regime de bens adotado for o da comunhão universal ou o da separação de bens obrigatória.
Isso porque no regime da comunhão universal opera-se um condomínio familiar, instaurando-se, nas palavras de Orlando Gomes, o estado de indivisão, passando a pertencer a cada cônjuge a metade ideal do patrimônio comum.2 Nessa hipótese, pois, não há concorrência, mas sim comunhão. E uma exclui a outra, ou seja, onde houver comunhão, não poderá ocorrer concorrência.
Quanto ao regime da separação obrigatória de bens3, não haverá concorrência hereditária quanto aos bens particulares de cada cônjuge, por força do mandamento legal em estudo.
Neste particular, é objeto de questionamento, ainda, a manutenção, ou não, do teor da súmula 377 do STF, que admite a comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento. Se aplicada a súmula, todavia, haverá apenas comunhão nos aqüestos, persistindo a impossibilidade de concorrência quanto ao patrimônio particular.
Como visto, operou-se, em princípio, uma situação de desigualdade entre os casados pelo regime da separação convencional e pelo da separação obrigatória, vez que a concorrência hereditária verificar-se-á apenas no primeiro caso, não sucedendo no segundo.
Sendo assim, se um dos nubentes necessitar de suprimento judicial de consentimento para casar, por negativa injusta de um dos pais, teremos um matrimônio realizado sob o regime da separação legal (art. 1.641, III). Ora, nesta hipótese, se um dos cônjuges vier a falecer, deixando apenas patrimônio particular, não fará jus, o outro, à concorrência hereditária, caso existam filhos comuns. Trata-se de uma injustiça singular.
Para o novel legislador, poderá ocorrer a concorrência hereditária no regime da separação convencional de bens (art. 1.687), eis que não tratada expressamente entre as exceções previstas no inciso I do art. 1.829 do NCC.
Aqui, como explicita Maria Helena Diniz, há dois patrimônios perfeitamente separados e distintos: o do marido e o da mulher.4 A referida concorrência hereditária incidirá, pois, sobre o patrimônio particular alheio.5
De igual maneira, é de deduzir-se que a concorrência hereditária verifica-se, também, no regime da participação final dos aqüestos (art. 1.672), por o mesmo não estar elencado no rol dos regimes de bens ali excluídos (art. 1.829, I, NCC).
Neste novo regime, de características européias, o patrimônio adquirido por cada cônjuge na constância do casamento, por qualquer título, continua sendo próprio. Como o novo texto não impediu, aqui, a coexistência do direito hereditário entre descendentes e cônjuge sobrevivo, terá plena eficácia no que tange ao patrimônio particular de cada um.
REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL: BENS PARTICULARES
Por fim, constata-se a concorrência hereditária entre o primeiro e terceiro graus na ordem de vocação (descendentes e cônjuge) no regime da comunhão parcial de bens, apenas quando o autor da herança tiver deixado bens particulares, ou seja, se não houver deixado bens comuns (aqüestos). O Código excluiu da concorrência, como visto, os bens comuns, porque já amparado o cônjuge sobrevivo pelo direito de meação.
Sendo assim, quanto aos bens suscetíveis de meação, ou seja, os que foram adquiridos na constância do casamento, por qualquer dos cônjuges, a título oneroso (art. 1.660, I, NCC) ou por doação ou sucessão com cláusula de comunicabilidade (art. 1.660, III, NCC), haverá apenas a comunhão legal e não a concorrência, até porque são institutos excludentes, como mencionado acima.
Entretanto, em relação aos bens particulares de cada cônjuge, o novo Código diz que haverá concorrência, e tão-somente quanto a estes bens.
Neste momento, fazem-se imperativas três indagações: a) aplica-se, para efeito da concorrência hereditária, a lei vigente ao tempo da celebração do matrimônio (que determinou o regime de bens) ou a da época do falecimento do autor da herança? b) qual o cálculo para a determinação da concorrência hereditária? c) será o cônjuge, de qualquer maneira, concorrente dos descendentes?
Em primeiro lugar, é imperioso lembrar a regra do art. 1.787 do NCC, que determina que a lei vigente ao tempo da abertura da sucessão é a que a regula.
Portanto, independentemente da época da celebração do matrimônio, é a legislação vigente ao tempo da morte do autor da herança que disciplinará tal procedimento, de acordo com o regime de bens vigente. Como asseverava Carlos Maximiliano: "A morte fixa o momento em que cessa a capacidade jurídica de um indivíduo e começa a de outro em relação aos bens do primeiro".6
Lembremos, assim, que a lei vigente à época do casamento, que determinou o regime matrimonial, regulará, tão-somente, os efeitos da partilha de bens em vida, e não os da abertura da sucessão, que poderá ocorrer em período posterior, talvez sob a égide de uma nova lei.
CÁLCULO DA CONCORRÊNCIA HEREDITÁRIA
Quanto ao cálculo da concorrência hereditária, o art. 1.832 do NCC trata de enunciá-lo, mas, para aferi-lo, devemos considerar os três critérios anteriormente demonstrados.
Assim, havendo filhos unilaterais do falecido – e se o regime de bens for um dos enquadrados acima – o cônjuge sobrevivo concorrerá com os mesmos, quanto aos bens particulares, em quinhões iguais, por cabeça. Exemplificando: deixando o de cujus quatro filhos unilaterais, cada um – inclusive o cônjuge – arrecadará 1/5 da herança (leia-se: dos bens particulares).
Se o falecido deixou filhos comuns com o cônjuge sobrevivo, a quota deste nunca poderá ser inferior à quarta parte da herança. Desta maneira, se são seis os filhos, o cônjuge arrecadará 1/4 do monte particular, por força do art. 1.832 do NCC, sendo que os 3/4 restantes serão partilhados, igualmente, entre aquela prole.
Mas, havendo concurso entre filhos unilaterais e comuns, fato que o Código é absolutamente omisso, será necessário socorrer-se da seguinte fórmula: a) apura-se o montante do patrimônio particular; b) reparte-se o mesmo, por cabeça, entre todos os filhos (unilaterais e comuns); c) calcula-se, quanto aos filhos unilaterais, a concorrência do cônjuge (ex: havendo três filhos unilaterais, caberá 1/4 a cada um, pois o cônjuge está incluído no cálculo); d) calcula-se, quanto aos filhos comuns, a concorrência do cônjuge, que nunca poderá ser inferior à quarta parte; e) soma-se o cálculo da alínea c com o da alínea d, onde restará apurado o cálculo final da concorrência do cônjuge.
A última indagação enfrenta o disposto no art. 1.830 do NCC, onde o cônjuge sobrevivente só terá direito sucessório se não tiver sido realizada, ao tempo da abertura da sucessão, a separação judicial, ou se a separação fática verificada não extrapolar dois anos consecutivos.7
Eis aí o resultado da interpretação dos artigos 1.829 e 1.832 do novo Código Civil que, a par de refletirem uma iniciativa modernista, trazem em seu bojo uma redação tumultuada, exatamente ao inverso das Codificações européias, acima referidas, que serviram de inspiração ao nosso precipitado legislador.
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NOTAS
1 O Código Civil lusitano prescreve regras muito semelhantes à do novo texto brasileiro (art. 1.832), determinando, no nº 1, do art. 2.139, que a partilha entre o cônjuge e filhos faz-se por cabeça, onde a quota do cônjuge não poderá ser inferior a uma quarta parte da herança. Uma observação importante a fazer é que o texto português não distingue filhos unilaterais dos filhos comuns, evitando, assim, maiores transtornos para o cálculo da partilha, fato que ocorre, infelizmente, em nosso novo Código
2 Orlando Gomes. Direito de Família, 7. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1977, p. 188.
3 Observa-se que o precipitado legislador, no art. 1.829, inciso I, do NCC, fez equivocada remissão ao art. 1.640, parágrafo único, quando o correto deveria ser ao art. 1.641 do NCC.
4 Maria Helena Diniz. Curso de Direito Civil Brasileiro, 17. ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p. 164.
5 A respeito de tal tema, e considerando-se as inúmeras lacunas deixadas pelo novo texto, é de questionar-se, também, a aplicação do teor do art. 259 do Código de 1916, que prescrevia a comunicabilidade dos bens adquiridos na constância do casamento, no silêncio do contrato nupcial. A propósito, Silvio Rodrigues entendia que tal dispositivo (art. 259) fazia gerar um grande absurdo, onde os nubentes, embora tivessem declarado no pacto a escolha do regime de separação de bens, na realidade estariam se casando pelo regime da comunhão parcial, salvo se fizessem constar do termo que os bens adquiridos não se comunicariam. Ou seja, era necessário que houvesse duas declarações: a) a de que escolheram o regime da separação; b) a de que os aqüestos também não se comunicariam. Direito Civil, 23. ed. São Paulo, Saraiva, 1998, p. 168.
6 Carlos Maximiliano. Direito das Sucessões, 3. ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1952, p. 36.
7 Nesta hipótese, caberá ao cônjuge sobrevivente demonstrar que a culpa pela separação de fato se deu por culpa do falecido, gerando uma prova, em verdade, absolutamente difícil, ou "funesta".