USO DA PROPRIEDADE E A VIZINHANÇA
USO DA PROPRIEDADE E A VIZINHANÇA
"O fato de um vizinho lançar lixo em terreno de seu confinante, ou ainda atear-lhe fogo, provocando danos à propriedade e pondo em risco até mesmo a saúde do proprietário, representa um ato ilícito, exigindo, de imediato, a composição do dano."
O Direito existe em função do homem. Este vive essencialmente em companhia de outros indivíduos. Logo, o ser humano é levado sempre a interagir e, em virtude disso, existem "relações de coordenação, subordinação, integração e delimitação"1 entre os indivíduos, as quais geram, inevitavelmente, perturbações entre os mesmos.
Para que a paz e a convivência humana estejam protegidas e garantidas, é necessário um complexo de normas de organização de conduta social, delimitando as faculdades das pessoas, compondo litígios resultantes de interesses divergentes, no escopo de possibilitar a vida em sociedade.
Dentre os conflitos de interesses, quando surgidos no âmbito dominial dos indivíduos, elevam-se as mais simples, e ao mesmo tempo, tão complexas questões sobre o uso, gozo e disposição nascidos do vínculo entre a pessoa e a coisa. Eis que o exercício do direito de propriedade, embora considerado pleno e legalmente protegido, sofre restrições, seja por interesse coletivo ou individual.
No que tange à propriedade imóvel, certas restrições se justificam no sentido de evitar conflitos entre vizinhos, que, não raro, ocorrem por causa de entrechoques de interesses dos titulares de prédios confinantes.
DOS DIREITOS DE VIZINHANÇA E CONFLITOS
Para Maria Helena Diniz, a vizinhança, por si só, pode dar origem a conflitos. A autora, acolhendo lições de Santiago Dantas, considera "conflito de vizinhança sempre que um ato praticado pelo dono de um prédio, ou estado de coisas por ele mantido, vá exercer seus efeitos sobre o imóvel vizinho, causando prejuízo ao próprio imóvel ou incômodo ao morador". 2
Incumbe à norma limitar e ordenar os domínios dos proprietários de prédios contíguos, buscando uma utilização social destes, diante dos desequilíbrios provenientes de fatos ou atos jurídicos causadores de danos e incômodos àquele que se encontra na qualidade de vizinho. Importante lembrar que vizinhança não significa simples contigüidade de prédios. Como ressalta Venosa, "o núcleo de vizinhos, a vicinitude, pode ser mais ou menos amplo. O espectro de pessoas atingidas pelo estorvo à vizinhança variará conforme a natureza do distúrbio: sonoro, gasoso, edilício, comportamental, etc."3
No ordenamento jurídico pátrio encontram-se os chamados direitos de vizinhança, que consistem em regras estabelecedoras de obrigações de permitir (sujeição) práticas de atos pelo vizinho, bem como obrigações de abster-se (proibição) de práticas de outros. O que se vai configurar aí é a imposição de sacrifícios que devem ser suportados por um indivíduo, em contraposição ao exercício de um direito do proprietário vizinho, ensejando, destarte, a possibilidade de convivência social, desde que essas obrigações sejam recíprocas.
Os direitos de vizinhança são obrigações propter rem (obrigação acessória real), pois vinculam o vizinho e o constituem devedor da obrigação de respeitá-los. Há um misto de direito pessoal e de direito real, haja vista as obrigações recaírem sobre uma pessoa por força de um determinado direito real. Toda obrigação propter rem é transmitida ao sucessor o título particular do vizinho, e se extingue pelo abandono da coisa. O direito de vizinhança fundamenta-se na parêmia: jus et obligatio sunt correlata (A todo direito corresponde uma obrigação).
Não obstante tais direitos e deveres recíprocos, na realidade são inúmeros e diversificados os problemas surgidos entre vizinhos, discussões, brigas e perturbações que, embora sejam bastante registrados, nota-se que muitos não chegam ao conhecimento da polícia, ou seja, o sossego e a tranqüilidade das pessoas já não estão somente ameaçados pela violência dos assaltos, invasões, assassinatos, como também encontram-se prejudicados por um simples ato do vizinho, seja ele uma indústria poluidora, um morador barulhento, ou que cria animais bravios.
Não faltariam aqui exemplos de situações conflituosas entre habitantes dum mesmo prédio, ou melhor, de imóveis vizinhos. O que se procura acima dessas questões similares de vizinhança é não violar nem chocar direitos subjetivos e constitucionalmente assegurados, portanto, públicos. São direitos inerentes ao homem que, em casos concretos, se vêem disputados, porém são insuscetíveis de anulação, como é o caso, por exemplo, de um conflito gerado entre o direito de culto dos participantes de determinada comunidade religiosa, titulares desta liberdade pública, e do direito de propriedade correlato ao imóvel onde se realizam os cultos, com utilização de instrumentos musicais, cânticos, recitações, e o direito à tranqüilidade dos moradores vizinhos. É óbvio que não se pode anular nenhum desses direitos constitucionalmente garantidos.
A boa utilização da propriedade junto à defesa dos direitos subjetivos torna-se prioridade para a coexistência pacífica entre os confinantes.
O Código Civil brasileiro, quando disciplina os direitos de vizinhança, cuida do uso anormal da propriedade, de questões sobre árvores limítrofes, passagem forçada, passagem de cabos, tubulações e águas e; delimita restrições oriundas das relações de contigüidade entre dois imóveis, versando sobre os limites entre prédios vizinhos, direito de tapagem e direito de construir.
USO DA PROPRIEDADE
Dando ênfase às restrições ao direito de propriedade quanto à intensidade de seu exercício, ou seja, o uso normal e anormal da propriedade, diz o artigo 1.277, do Código Civil: Art. 1.277. O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
Parágrafo único. Proíbem-se as interferências considerando-se a natureza da utilização, a localização do prédio, atendidas as normas que distribuem as edificações em zonas, e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.
Antes de delinear as interferências que põem em risco a tranqüilidade, a segurança e as condições de saúde do vizinho, é interessante mencionar a abordagem quanto ao ato ilícito.
O ato ilícito vem conceituado pelo Código Civil como sendo o cometido por aquele que, por ação ou omissão, negligência ou imprudência, viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral.
Com base nisso, ocorre o fato de que um vizinho lança lixo em terreno de seu confinante, ou ainda ateia-lhe fogo, provocando danos à propriedade e pondo em risco até mesmo a saúde do proprietário. Este caso representa um ato ilícito, exigindo, de imediato, a composição do dano. Razão reside na proibição de certos comportamentos do indivíduo que excedem ao que tem direito, capazes de prejudicar alguém. Esse indivíduo, ao prejudicar seu vizinho, responderá pelas conseqüências de seu ato sem que invoque em sua defesa as normas que regulam os conflitos de vizinhança.
Todavia, acolhendo as palavras de Sílvio Rodrigues, "o problema ganha em complexidade quando o prejuízo, ou o incômodo, que afeta o vizinho, resulta de ato praticado pelo confinante dentro do âmbito de seu direito".4
É certo que o proprietário, dentro da sua órbita dominial, pode dispor e gozar da coisa, retirando todas as vantagens que melhor lhe convierem. Contudo, em razão da convivência social, não se permite que ele use de tal forma um direito se isto importar em grande sacrifício ou dano ao seu vizinho, pois cada indivíduo tem o seu domínio protegido, que deve ser respeitado. Exemplo típico desse ato abusivo é o caso de um proprietário acender sua lareira e a fumaça invadir o prédio contíguo, trazendo sérios incômodos aos seus moradores. Nas soluções desses inconvenientes, as aplicações de medidas restritivas fundamentam-se na teoria do abuso de direito, a qual atribui ilicitude aos atos praticados no exercício irregular de um direito, o que vale dizer que não pratica ato ilícito o proprietário que exerce o seu direito de maneira manifestadamente regular ou normal.
No entanto, pode ocorrer que a nocividade não decorrerá de um uso abusivo de direito, visto que, embora sendo anormal tal uso, o mesmo será socialmente necessário. Como o abuso é analisado com base no que seja a propriedade útil, de acordo com o art. 1.278 do Código Civil vigente, a interferência é justificada pelo interesse público. Não impede, outrossim, que a persistência do incômodo tutelado pelo interesse coletivo, a exemplo do que acontece com uma fábrica, impossibilite uma indenização àquele que sofrer com tal infortúnio.
O que se deve saber, em suma, quanto às interferências prejudiciais capazes de causar conflitos de vizinhança, é que podem elas ser classificadas em ilegais, abusivas e lesivas, conforme já discorrido acima. As duas primeiras estão enquadradas no art. 1.277 do Código Civil, onde existirá o uso anormal da propriedade. Quanto às interferências lesivas, são atos absolutamente lícitos e regulares, porém, causam dano ao vizinho.
CRITÉRIOS ADOTADOS PARA ESTABELECER O USO NORMAL DA PROPRIEDADE
Diante das possíveis ofensas à segurança pessoal ou aos bens que comprometem a estabilidade de um imóvel e a integridade de seus moradores, somando-se às ofensas ao sossego e à saúde, para que se deduza um uso normal ou anormal da propriedade, leva-se em conta, como critérios, o grau de tolerabilidade, a localização do prédio e a natureza da utilização ou do incômodo, como bem enumera Maria Helena Diniz.
A vida em sociedade exige das pessoas obrigações tais como suportar certos incômodos, contanto que não ultrapassem os limites do razoável e do tolerável.5 Assim, o vizinho deve suportar o barulho normal das máquinas de uma tipografia confinante (RT, 186/176) ou rumor provindo de loja situada no pavimento inferior onde se encaixotam mercadorias (RT, 186/299), visto que são entendidos como incômodos menores. Se o incômodo for tolerável, o juiz despreza a reclamação da vítima, pois a convivência social por si só cria a necessidade de cada um ter um pouco leniência (RT, 448:87).
O segundo critério para se aferir a normalidade do uso do domínio consiste na zona onde ocorre o entrechoque de vizinhos. Não se pode apreciar com os mesmos padrões a normalidade do uso da propriedade em um bairro residencial e um setor industrial ou até mesmo, uma cidade tranqüila do interior e uma capital.
Por fim, procura-se verificar a natureza da utilização ou o incômodo, acrescentando ainda a teoria da pré-ocupação, considerando que, nas lições de Demolombe, citado por Maria Helena, aquele que se instala depois de estabelecido certo uso pelo proprietário contíguo não poderá alterar esse estado de coisas. Entretanto, tal teoria não será aceita por absoluto quando, por exemplo, o barulho causado pelo vizinho é demasiado ou, apenas porque a lei o proíbe, o proprietário não se vale da anterioridade de seu estabelecimento para neutralizar o distúrbio.
Resta, portanto, nas soluções para a composição da lide, identificar o que seja tolerável ou inaturável, a fim de que se possa reprimir ou não o ato causador do dano; ou reduzi-lo a proporções normais, e ainda se for preciso, cessar atividade danosa ordenando indenização pelo prejuízo.
Em síntese, ocorrendo questões de direito de vizinhança, a composição das lides observará as seguintes alternativas:
• Quando o incômodo é normal, tolerável, não será reprimido;
• Se tratar-se de dano intolerável, deve o juiz, primeiramente, determinar que seja reduzido a proporções normais;
• Se não for possível reduzir o incômodo a níveis suportáveis por meio de medidas adequadas, então determinará o juiz a cessação da atividade;
• Se a causadora do incômodo for indústria ou qualquer atividade de interesse social, não se determinará o seu fechamento ou a cessação da atividade. Se o incômodo não puder ser reduzido aos graus de tolerabilidade por meio de medidas adequadas, será imposto ao causador do dano a obrigação de indenizar o vizinho.
Na preservação dos direitos em pauta, a lei confere a ação cominatória, em que importará ao réu a obrigação de se abster da prática de certos atos prejudiciais ao vizinho, ou a de tomar as medidas adequadas para a redução do incômodo, sob pena de pagamento de multa diária. Se houver dano consumado, cabível ação de ressarcimento de danos. Ainda, o vizinho que se sentir ameaçado por um desabamento iminente de prédio pode exigir que a outra parte preste, em juízo, caução pelo dano. Essa caução pelo dano iminente é chamada de caução de dano infecto.
Washington de Barros Monteiro, citado por Maria Helena Diniz, acentua que muitos dos fatos caracterizadores do uso nocivo da propriedade configuravam contravenções penais como ocorre com a do art. 30 do Decreto-Lei n° 3.688/41(perigo de desabamento).
Enfim, as relações de vizinhança orientar-se-ão no sentido de que não se exercerá o direito de propriedade de maneira a pôr em risco a tranqüilidade, a saúde e segurança do vizinho juntamente com seu imóvel, tendo em vista sempre a boa convivência social.
Infere-se daí que os direitos de vizinhança abordam os limites do bom e do mau uso da propriedade, presumindo o que seja tolerável e intolerável, observando-se o ponto de vista da propriedade alheia.
Nas palavras de Venosa, "o homem em ilha deserta não é, em princípio, atingido pelo Direito, tudo pode e nada deve, a não ser a sua própria moral. Qualquer restrição que sofra é de ordem exclusivamente psíquica. Contudo, vivendo em sociedade, surge a relação jurídica, sendo obrigado a obedecer a preceitos necessários para a harmonização coletiva".
NOTAS
1 Franco Montoro, André. Introdução à Ciência do Direito, 3. ed., S. Paulo, Martins, 1972, v. 2, p. 363 e 364.
2 Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Direito das Coisas, 4. v., 18. ed., S. Paulo, Saraiva, 2002.
3 Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais, 5. v., 2. ed., S. Paulo, Atlas, 2002.
4 Rodrigues, Sílvio. Direito Civil: Direito das Coisas, 5. v., 27. ed., S. Paulo, Saraiva, 2002.
5 Gonçalves, Carlos Roberto. Sinópses Jurídicas – Direito das Coisas, 3. v., 5. ed., S. Paulo, Saraiva, 2002.