O CONTRATO DE CONVIVÊNCIA

22/06/2010 14:40

 

O CONTRATO DE CONVIVÊNCIA

Autor: FERNANDO CHEMIN CURY é assessor de desembargador do TJ/MS, professor de Direito Civil e Processual Civil da Uniderp (Campus IV) e pós-graduado em Direito Processual Civil pela FIC/Unaes.

 

INTRODUÇÃO

 

O escopo deste artigo é chamar a atenção dos estudiosos e operadores do Direito para um tema ainda pouco abordado, tanto na doutrina como na jurisprudência, que é a possibilidade de os companheiros estipularem os limites e as normas que regulamentarão o regime patrimonial do casal na união estável.

 

De início, vale lembrar que a Constituição Federal de 1988 trouxe para o ordenamento jurídico brasileiro uma grande novidade no campo do Direito de Família, ao incluir, em seu art. 226, § 3º, a união estável como espécie de entidade familiar.

 

Seguidamente à promulgação de nossa Carta da República, o legislador, preo­cupado com a efetivação daquele comando constitucional, editou as Leis nºs 8.971/94 e 9.278/96, visando regulamentar este novel instituto introduzido pelo constituinte originário e, mais recentemente, o Código Civil de 2002 acabou por consolidá-lo, trazendo em seu art. 1.723 que "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".

 

Foram muitas as discussões que avultaram ao redor do tema, entre elas a conceituação da união estável, o tempo mínimo para a sua caracterização1, o alcance da referida expressão, bem assim a possibilidade de aplicação subsidiária de algumas regras inerentes ao casamento, advindo daí a preocupação da doutrina com o regime de bens a ser adotado pelos conviventes, já que este instituto, sob a égide do Código de 1916, somente era previsto para o casamento.

 

Com o advento do CC/02, o contrato de convivência passou a ser expresso em nosso ordenamento, através do art. 1.725, que determina que "na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens".

 

CONTRATO DE CONVIVÊNCIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

 

Preliminarmente, insta ponderar que que não existe uma única denominação para este instituto, vale dizer, tanto a doutrina como a jurisprudência já tiveram a oportunidade de intitular esta figura de Direito de Família por diversas formas, a exemplo de "pacto anteconcubinário"2, "convenção concubinária"3, "convenção entre os conviventes", "contrato parti­cular de assistência mútua", etc. Aliás, nem mesmo o CC/02 faz alusão ao nomen iuris "contrato de convivência", eis que o art. 1.725 apenas traz a expressão "salvo contrato escrito entre os companheiros".

 

Para nós, a expressão "contrato de convivência" é a que mais assimila e reflete a natureza do instituto, sobretudo pela ligação existente com o termo conviventes, utilizado para aqueles que se colocam sob o regime da união estável. Ademais, é forçoso reconhecer que esta figura jurídica muito difere do pacto antenupcial previsto para o casamento, sobressaindo, daí, mais um motivo para não concordarmos com certas expressões alinhadas no parágrafo anterior.

 

No que tange ao plano conceitual do contrato de convivência, podemos dizer que se trata dum instrumento escrito, através do qual as partes estipulam limites e regras acerca da situação patrimonial do casal, com bastante amplitude e liberdade na exteriorização de suas vontades. Em outras palavras, poderíamos conceituar este instituto como o instrumento pelo qual os sujeitos de uma união estável promovem regulamentações quanto aos reflexos da relação patrimonial existente no curso da relação, reconhecendo, criando, modificando ou extinguindo direitos entre eles.4

 

Nota-se, todavia, que a expressão "amplitude e liberdade na exteriorização de suas vontades" deve ser interpretada conjuntamente com o termo "no curso da relação", isto porque, por mais liberdade que os conviventes tenham no dispor de seu patrimônio, é preciso que se diga que o contrato de convivência somente obrigará o seu cumprimento quanto àqueles bens adquiridos na constância da união estável, sendo certo que os bens pré-existentes a uma parte da relação não podem ser objeto do contrato de convivência e, se for, apenas valerá como promessa de doação realizada por um companheiro ao outro.

 

Desta forma, querendo os conviventes compartilhar seu patrimônio preexistente, devem doá-lo no montante desejado, até mesmo por intermédio de instrumento público, se forem bens imóveis.

 

Guilherme Calmon Nogueira Gama, ao tratar do assunto, adverte nesse sentido. Verbis:

 

"É importante notar que os limites da disponibilidade entre os companheiros, por força da própria lei, somente se refere à questão do patrimônio adquirido onerosamente no curso da união. Ou seja, todos os bens anteriores, pertencentes a qualquer um dos companheiros, continuarão a integrar o patrimônio particular deste partícipe da relação, sem possibilidade de passar a ser considerado em condomínio com o consorte. Em outras palavras, os bens adquiridos anteriormente à união não poderão ser objeto de pacto concubinário, e sim somente aqueles que porventura venham a ser adquiridos na constância da união. Da mesma forma, os bens adquiridos a título gratuito, como, por exemplo, por força de doação, legado, herança, e ainda em virtude de fato eventual sem concurso ou despesa do adquirente (vg., o prêmio da loteria), ainda que na vigência da união, não são passíveis de estipulação no pacto, já que não pressupõe contribuição do companheiro em nenhuma hipótese, daí a lei ter sido precisa ao somente incluir os bens adquiridos a título oneroso.5

 

Deflui-se da lição doutrinária que o grande propósito deste instituto é facultar aos conviventes a possibilidade de estipularem regras sobre o acervo patrimonial a ser adquirido no decorrer da união estável, sempre no intuito de resguardar e valorizar o esforço conjunto empregado pelos consortes para a aquisição do patrimônio.

 

Em outras palavras, como acentua Francisco José Cahali, "sua finalidade, em linhas gerais, é a própria estabilidade do relacionamento diante da histórica incerteza jurídica, não superada pela legislação vigente, ainda imatura a interpretação das normas pelos tribunais Estaduais e Superiores, e as inúmeras injustiças verificadas no tratamento dos concubinos quando da dissolução da união, voluntária ou involuntária (no caso de falecimento de um dos sujeitos). Deixa-se de lado a preocupação com os efeitos duvidosos da união, permitindo-se a plenitude da dedicação dos partícipes à relação afetiva e comunhão de esforços para se alcançar os objetivos pessoais comuns, exercendo a cumplicidade inerente às relações de afeto destinadas à formação e estruturação sólida de uma família."6

 

De outra sorte, podemos dessumir que a caracterização da união estável mostra-se como uma condicio iuris do contrato de convivência, vale dizer, a eficácia deste instituto está intimamente condicionada à caracterização da união estável.

 

Nesse ponto, relevante salientar que o raciocínio inverso não pode ser tido como verdadeiro, ou seja, o contrato de convivência não demonstra a efetivação da união estável. Como bem se depreende do escólio do precitado professor Cahali, "a convenção é um regramento patrimonial que não institui a entidade familiar por si só, mas que a pressupõe como condição de sua eficácia, estando aqui o símile aos contratos reais e não meramente consensuais".7

 

Com efeito, o fato de a união estável ser condição sine qua non para a eficácia do contrato de convivência, não implica na assertiva de haver uma condição suspensiva para a verificação do pacto, pois, quando do seu implemento, os efeitos retroagiriam à data de sua celebração. No contrato de convivência a situação se mostra diferente, já que os efeitos desta avença somente se verificam após o início da união e não quando da realização do contrato.

 

Essa reflexão nos permite adentrar em outro tema pertinente ao instituto ora estudado, que é o momento em que o contrato de convivência pode ser celebrado.

 

A doutrina já se mostrou divergente quanto a este ponto, como se extrai do cotejo entre as lições de Guilherme Calmon Nogueira Gama e Francisco José Cahali. Para este autor, "mantendo fidelidade ao princípio de que o ato não vedado, ou contrário à lei, é permitido, na ausência de norma idêntica ao contido no art. 256 do Código Civil, em que se limita a possibilidade de realização do pacto (NCC, art. 1.639) anteriormente ao casamento, tem-se que o contrato de convivência pode ser celebrado a qualquer momento, na constância da união estável ou previamente ao seu início".8

 

De seu turno, Guilherme Calmon Nogueira Gama, ao lecionar sobre o tema, reverbera que "Adotando-se raciocínio analógico com o pacto antenupcial, tomadas as devidas cautelas em decorrência das peculiaridades do companheirismo, deve-se considerar que o termo final para a celebração do pacto ‘cocubinário’ é o momento em que estão preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos para a configuração do companheirismo, sem, evidentemente, um rigor formal, por se tratar de situação fática, não sujeita a qualquer solenidade".9

 

Com a devida vênia de que é merecedor o ilustre professor, parece mais acertada a corrente sufragada por Francisco José Cahali, para quem o pacto pode ser feito a qualquer instante, seja antes da união como também em qualquer momento de sua existência.

 

A propósito, os argumentos utilizados pelo ilustre professor Guilherme Calmon Nogueira Gama, no sentido de aplicar analogicamente as disposições do pacto antenupcial, não têm razão de ser. De clareza indisfarçável são as diferenças existentes entre os dois institutos, sobretudo pela taxatividade dos regimes de bens no casamento e pela sua regra de imutabilidade, apesar desta última característica não subsistir no novo Código Civil.

 

Acrescenta-se, por oportuno, que o argumento utilizado pelo insigne professor, de que "não é possível que, decorridos, por exemplo, três anos do início da união, o casal resolva celebrar pacto, podendo prejudicar terceiros diante de tal medida", também não oferece óbice para que o pacto seja feito em qualquer tempo no decorrer da união.

 

A uma, porque conforme já explicitado, o requisito objetivo "tempo" previsto na Lei nº 8.971/94 para caracterizar a união estável restou revogado, isso porque a Lei nº 9.278/96, que regulamentou o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, não fez alusão a este pressuposto objetivo para a caracterização da união estável. Ademais, isso se afigura mais notável pela redação do art. 1.723 do novo Código Civil, segundo o qual "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família", sobressaindo daí que o prazo mínimo estipulado naquela lei não está mais em vigor.

 

A duas, porque a adoção de limites e regras acerca da situação patrimonial dos conviventes, seja em que momento for, não poderá prejudicar terceiros, no que o instituto de Direito Processual Civil chamado "fraude à execução", previsto no art. 593 do CPC, revela-se hábil para coibir esta prática.

 

Para arrematar, mostra-se oportuno transcrever a lição de Cahali, que nos permite concluir pela possibilidade de o contrato de convivência ser estipulado a qualquer tempo no decorrer da constância da união estável. In verbis:

 

"O interesse na formalização deste contrato na constância da união é evidente, até mesmo para se conferir segurança à relação, principalmente quando esta passa a se apresentar, no campo afetivo, sólida e estruturada, e quem sabe até com o nascimento de filhos comuns. Mais ainda, passando a existir uma evolução patrimonial que talvez no início da convivência era improvável ou remota, a definição quanto à situação dos bens chega a ser até um fator importante do amadurecimento da relação, como uma etapa que, se bem superada, permite o prolongamento de uma convivência saudável, sem dúvidas ou desconfianças recíprocas".10

 

Desta forma, com o devido respeito aos que pensam em sentido diverso, nos parece que a razão está ao lado da corrente doutrinária que defende a possibilidade de o contrato de convivência ser feito a qualquer momento no decorrer da união estável.

 

CONCLUSÃO

 

Pode-se concluir, após estas breves considerações sobre o tema em análise, que o instituto do contrato de convivência veio, com notável importância e singular utilidade, regular, de forma ampla e liberal, o regime patrimonial entre os conviventes, permitindo, com isso, que seus interesses sejam livremente pactuados, trazendo maior comodidade e segurança para a relação instaurada entre o casal.

 

Este instituto, a exemplo do que ocorreu com a união estável, foi inserido no Código Civil de 2002, em seu art. 1.725, segundo o qual "na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens".

 

Por se tratar de tema sobremaneira novo, com poucas ocorrências práticas, as divergências sobre o tema surgirão, cabendo à doutrina e também à jurisprudência interpretarem este instituto sempre com o propósito de prevalecer a sua ratio essendi, vale dizer, permitir que os conviventes possam estipular os limites e regras patrimoniais a serem obedecidos por eles quanto aos bens adquiridos na constância da união estável, o que impedirá de surgirem desigualdades e injustiças para uma das partes da relação afetiva.

 

Poderá o contrato de convivência ser celebrado a qualquer momento durante a união estável, no que os seus efeitos se verificam apenas após o início da união. Ademais, o seu objeto deve ser limitado aos bens adquiridos na constância da união estável, não podendo bens pré-existentes serem nele inseridos.

 

Por último, eventuais irregularidades ou interesses escusos vislumbrados no contrato deverão ser coibidos pelos instrumentos processuais à disposição em nossa sistemática processual, a exemplo do instituto da fraude à execução ou contra credores, entre outros.

 

 

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BIBLIOGRAFIA

 

 

 

Azevedo, Álvaro Vilaça. Estatuto da Família de Fato, S. Paulo, Jurídica Brasileira, 2001.

 

Brito, Nágila Maria Sales. O Contrato de Convivência: Uma Decisão Inteligente, Revista Brasileira de Direito de Família, nº 8, Porto Alegre, Síntese, 2001.

 

Cahali, Francisco José. O Contrato de Convivência na União Estável, S. Paulo, Saraiva, 2002.

 

Da Cunha, Rodrigo Pereira. Direito de Família e o Novo Código Civil, Belo Horizonte, Del Rey, 2001.

 

__________. Concubinato e União Estável, Belo Horizonte, Del Rey, 1999, 5. ed.

 

 

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NOTAS

 

1 Após várias discussões no tocante ao prazo mínimo para a caracterização da união estável, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em julgamento ocorrido antes da vigência do novo Código Civil, demonstrando a diversidade de entendimento existente nos Tribunais brasileiros sobre o tema, em acórdão relatado pelo eminente Des. Vanderlei Romer, concluiu, ao nosso ver, com acerto sobre a questão: "A Lei nº 8.971/94 fixou prazo ‘há mais de cinco anos’ para fins de assistência mútua alimentar entre concubinos, mas a Lei nº 9.278/96, disciplinando norma constitucional, omitiu o prazo e consignou ‘convivência duradoura, pública e contínua’, deixando, em termos, ao critério do julgador estabelecer o prazo e condições para reconhecimento da união estável, o que significa dar ao juiz a responsabilidade enorme de apreciar subjetivamente, no contexto da prova, o que seja convivência duradoura, pública e contínua. A Justiça carioca, em sua maioria, considerou ideal o prazo de cinco anos, consagrado pela consciência jurídica nacional e por diversos textos legais, como critério para configuração de convivência duradoura, salvo casos peculiares. Já os juízes especializados de São Paulo passaram a considerar o prazo mínimo de dois anos de união, a fim de que um dos companheiros possa requerer os benefícios.

 

Não há critério científico ou consuetudinário que dê legitimidade absoluta a uma ou outra das soluções. Uma união entre homem e mulher pode durar dez ou mais anos e não ser, necessariamente, estável (texto constitucional), como pode durar menos de cinco e atender a este requisito. Qualquer prazo mínimo não deve ser imposto em termos absolutos. Importa, isto sim, a existência de certa continuidade e um entrosamento subjetivo para distingui-la de uma união passageira descomprometida. Fixar um prazo cronológico mínimo para aferir a existência de uma união estável é correr o risco de detectá-la onde não existe ou, o que é pior, negá-la onde de fato se afigura" (TJSC, 2ª Câmara Cível, Agr.Instr. 9.812.159-0, rel. Des. Vanderlei Romer, DJSC de 28.12.99, p. 9). Importante dizer que o referido acórdão, ao que parece, está em consonância com a disposição do art. 1.723 do Código Civil de 2002.

 

2 Pereira, Rodrigo da Cunha. Concubinato e União Estável, Belo Horizonte, Del Rey, 1999, 5. ed., p. 43.

 

3 Gama, Guilherme Calmon Nogueira. O Companheirismo, uma Espécie de Família, S. Paulo, Revista dos Tribunais, 2001, 2. ed., p. 343-346.

 

4 Álvaro Vilaça Azevedo nos ensina, com propriedade, que "o contrato é o meio flexível para garantir os concubinos, nesse mar de incertezas e de injustiças em que navegou nossa Doutrina e Jurisprudência", acrescentando adiante, "que o contrato escrito dá a quem quiser e tiver muitos interesses a tranqüilidade em seu relacionamento. Esse contrato já era arraigado no uso social, principalmente quando existe, em jogo, patrimônio de alto valor" – Estatuto da Família de Fato, S. Paulo, Jurídica Brasileira, 2001, p. 384-385.

 

5 Ob. cit., p. 344.

 

6 Cahali, José Francisco. O Contrato de Convivência na União Estável, S. Paulo, Saraiva, 2002, p. 58. Sobre o tema, interessante estudo foi feito pela doutora Nágila Maria Sales Brito, que acentuou: "Com certeza, direitos resguardados e desconfianças à parte, somando-se ao aprendizado, com os erros perpetrados nos casamentos anteriores, diferenciando com clareza o ‘meu bem’ (vocativo carinhoso) do ‘meu bem’ (propriedade móvel ou imóvel pertinente a quem fala) o novo casal poderá formar uma família mais unida, segura e feliz, bem aos moldes do que se espera da família do século XXI". – Artigo intitulado de O Contrato de Convivência: Uma Decisão Inteligente, Revista Brasileira de Direito de Família, nº 08, Porto Alegre, Síntese, 2001, p. 38.

 

7 Ob. cit., p. 61.

 

8 Ob. cit., p. 72.

 

9 Ob. cit., p. 345-346.

 

10 Ob. cit., p. 74.